O objetivo desse texto é propor uma reflexão sobre a clínica fonoaudiológica, em específico, sobre a clínica da gagueira. Entende-se por clínica uma estrutura composta por quatro elementos homogêneos e covariantes – semiologia, etiologia, diagnóstica e terapêutica .(Freire, 2011)
Observa-se que a Fonoaudiologia, em um primeiro momento e em sua articulação com a medicina, olha para a gagueira como resultado de uma dificuldade ou incapacidade dos sistemas neurais em manter a fala fluente (Arcuri et al., 2009) ou seja, sob o ponto de vista orgânico. (Damasceno e Friedman, 2011). O diagnóstico proposto por esta clínica sustenta-se na gravação da fala que é comprada a uma amostra com o perfil dos tipos de disfluência, velocidade de fala, frequência de rupturas, entre outros aspectos audíveis/visíveis (Andrade, 2000) que sustentam padrões de patogenia ou normalidade. A terapêutica visa treinar o paciente a monitorar sua fala, a fim de modelá-la a um padrão considerado normal.
Observa-se que esse entendimento não constitui verdadeiramente uma clínica, pois os elementos que deveriam constituí-la – semiologia, etiologia, diagnóstica e terapêutica - não são interdependentes. Por exemplo, a terapêutica, na impossibilidade de intervir nos supostos fatores etiológicos, é composta de técnicas prescritivas.
Em um segundo momento, a Fonoaudiologia toma a gagueira como um sintoma de linguagem e mantém a coesão e covariância entre os quatro elementos que fundam a clínica. Para isso, o entendimento sobre gagueira centra-se no sujeito falante e na compreensão dos efeitos da interpretação do outro, que concorrem para moldar a subjetividade do falante (Friedman, 2010; Freire e Pascalicchio Passos, 2012).
Freire e Pascalicchio Passos (2012) supõem que a gagueira emerge na terceira posição do processo de aquisição de linguagem, quando se observa na fala das crianças a presença de pausas, reformulações e autocorreções. Nesta posição, o discurso da criança, por seus efeitos de semelhança, pode ser interpretado pelo adulto como gaguejante. Diante da negação de sentido, a criança depara-se com a falta de assemelhamento e pode ocupar a posição de sujeito gago. Por não continuar o diálogo, mas ressaltar a forma do discurso, o outro passa a ser visto como aquele que fiscaliza o dizer.
Nessa mesma direção, Friedman (2007) explicou a constituição da gagueira a partir de uma ideologia de bem falar que rejeita e estigmatiza a fala disfluente da criança. Nessa condição, explica, a criança fica numa situação paradoxal, na qual nem pode falar como falava, nem sabe como falar de outro modo, o que gera tensões em sua fala. O efeito disso na subjetividade, segundo Friedman (2007), é a antecipação, na fala, dos lugares em que a gagueira ocorrerá, na tentativa de contê-la. Desse modo, a autora indica que na gagueira, o falante prioriza a forma de sua fala em detrimento do sentido.
A esse respeito, Azevedo e Freire (2001) explicam que "na ordem discursiva há uma tensão natural entre língua (forma) e fala (sentido). Essa tensão é estruturante e determina todo o dizer, de tal modo que a linguagem é a articulação de língua e fala". Na posição fluente, dizem as autoras, há um privilégio do sentido (fala) em detrimento da forma (língua), já na posição gaguejante a tensão natural dá lugar a uma desarmonia, porque a atenção discursiva passa a estar na forma, o que se expressa pela certeza que o falante gago mostra de não conseguir falar sem gaguejar em certas palavras, certos fonemas, com certas pessoas. O privilégio da forma em detrimento do sentido, completam as autoras, leva o falante à perda da posição fluente.
Esse tipo de visão permite uma abordagem terapêutica que mantém homogeneidade e covariância entre os elementos da clínica, visto que, a partir das histórias e relatos do paciente, é possível conhecer os sentidos cristalizados sobre si, sobre a própria fala e sobre o outro e, a partir de diálogos e vivências de sensibilização da fala (Oliveira e Friedman, 2006), promover a desestabilização de tais significados, bem como a abertura de novos sentidos, de modo a proporcionar ao paciente a vivência de experiências novas e singulares que lhe permitam sair da posição de falante estigmatizado, para ocupar uma posição em que confia em sua possibilidade de falar e que mantém a tensão natural entre fala e língua.
Portanto, acredita-se que o desconhecimento sobre o funcionamento subjetivo-discursivo gaguejante faça com que parte da Fonoaudiologia restrinja o fazer terapêutico a estratégias que visam controlar o discurso do paciente e, consequentemente, mantenha a desarmonia entre fala e língua. Talvez seja esse um dos motivos para o falado insucesso terapêutico na clínica da gagueira.
Referências
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