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Wladimir Damasceno - minha história e a clínica da gagueira


Wladimir A. P. De Lima Damasceno

Boa noite, inicialmente quero agradecer ao meu amigo Maurício Lopes de Nascimento Jr. pelo convite e parabenizar a Comissão Organizadora pelo IV Encontro Pernambucano de Atenção à Gagueira, evento consolidado no cenário nacional.

Maurício, ao me convidar, pediu que falasse sobre três pontos: minha história com a gagueira, como me tornei fonoaudiólogo e meu recente mestrado em Fonoaudiologia, pela PUC-SP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Esses três pontos estão entrelaçados e, a partir da minha vivência, farei também algumas considerações sobre a clínica da gagueira.

Minhas primeiras lembranças sobre a gagueira remontam aos meus oito anos de idade, em sala de aula, quando a professora me solicitou a leitura, em voz alta, de um texto. Em determinada palavra travei. A sala riu e lembro que tive consciência da gagueira e consciência de que meu modo de falar não era aceito, de que havia algo de errado em minha fala. Essa situação me fez chorar em sala de aula. Lembro que meus pais foram à casa da professora conversar com ela. Dessa visita em diante, passei por fonoaudiólogos, psicólogo e otorrinolaringologistas.

Antes de prosseguir com a história em si, gostaria de fazer um breve parênteses para falar sobre a visão que compartilho a respeito da causa da gagueira. Entendo que essa causa não se esclarece a partir de uma relação linear do tipo: alguma condição A gera a condição B. Entendo que a forma gaguejada de falar é o efeito da tentativa de controlar a fala e essa tentativa se da por meio da antecipação da ocorrência da gagueira. Assim, faz-se necessário saber o que leva o falante a tentar esse controle. De acordo com a proposta de Friedman1,2,3, o que leva a isso é uma imagem estigmatizada de falante. E como a imagem se constitui? Então vamos voltar à minha história.


Do primeiro tratamento fonoaudiológico, aos oito anos de idade, a lembrança que tenho é que também estava lendo durante a sessão e travei em uma palavra. Essa palavra era “burro” e ao não conseguir pronunciar aquela palavra, novamente chorei. Hoje entendo que essa palavra era muito representativa para a imagem que se estava desenhando de mim na situação de fala que eu vivia. Por isso, gostaria de pensar com vocês como uma palavra comum se transforma em um obstáculo difícil de ser ultrapassado na fala.


Cada palavra tem uma carga emocional para o falante. Conforme o valor que ele atribui a ela, à palavra pode ser-lhe indiferente, entusiasmá-lo ou mesmo amedrontá-lo, envergonhá-lo. Assim, é natural que o estado emocional se altere diante da eminência de pronunciar certas palavras, como, por exemplo, ocorre com a própria palavra “gagueira” ou “gago” para as pessoas que se sentem enquadradas nesse padrão de fala e o rejeitam. A exacerbação emocional evocada pelo valor dado à uma certa palavra é, por sua vez, uma das condições que favorece a produção de disfluências ao falar, sendo essa disfluência nada mais que um retrato natural da dinâmica que se estabelece entre fala, emoção e movimentos musculares ao falar. Essas disfluências revelam que o falante é um sujeito que sente, isto é, revelam a subjetividade do falante.


No senso comum, porém, as pessoas nem sempre compreendem as relações entre a objetividade da fala e a subjetividade do falante e, consequentemente, podem achar que a disfluência seja algo anormal. Isso  leva as pessoas a rejeitá-la em vez de aceita-la com naturalidade. Tal condição pode ser especialmente dramática quando se trata de disfluência na fala infantil, porque a criança não tem uma postura crítica em relação às reações do adulto e, por isso, tende a aceitar essa reação como se fosse uma verdade, passando então a acreditar nela. Eu acreditei. Acreditei nos meus pais que havia algo de errado em minha fala, quando eles não souberam acolher de forma adequada minhas disfluências e me encaminharam a uma fonoaudióloga para tratá-las. Acreditei também na fonoaudióloga, quando não teve a sensibilidade ou o conhecimento necessário para lidar com a situação do choro em seu consultório, diante da dificuldade de pronunciar a palavra “burro” e aquele meu bloqueio, para ela, apenas evidenciou a presença de uma dificuldade. De fato, não me lembro de uma atitude de apoio ou carinho da parte da fonoaudióloga, encorajando-me a falar. O tempo todo a cobrança era o ponto forte da terapia. Ficou claro que eu deveria treinar minha fala para, assim, conseguir falar do modo considerado normal, ou seja, sem disfluir, sem parar diante de alguma palavra. Hoje entendo que a fonoaudióloga repetiu o conhecimento de senso comum e entendo o quanto isso  favoreceu que eu construísse uma imagem estigmatizada de falante.


Nessa medida, a partir do conhecimento que tenho hoje, gostaria de pensar com vocês o que acredito seria um bom caminho para o trabalho fonoaudiológico nas condições descritas. A fonoaudióloga teria feito um bom trabalho se tivesse acolhido e aceitado o meu modo de falar. Diante da trava que provocou meu choro, poderia ter demonstrado, compreensão e carinho. Poderia ter me ajudado, se optasse por um trabalho de consciência articulatória,  demonstrado que para falar “burro” se juntam os lábios para o “/b/”, ao mesmo tempo que eles se afunilam para o “u”. Em seguida se encosta o dorso da língua no céu da boca para o “/R/” e arredondam os lábios para o “o”. E que eu ficara travado, porque parara na posição de lábios fechados, que correspondia ao “b”, ao mesmo tempo em permaneci empurrando o ar que, devido ao fechamento dos lábios, não podia sair. A partir dai, poderia ter brincado com a minha trava, pedindo que a fizesse novamente de propósito, fazendo ela também travas de propósito, ajudando-me a compreender meus gestos articulatórios tensos. Poderia também ter-me ajudado a construir um repertório de respostas para as pessoas que fizessem cobranças ao meu modo de falar, ajudando-me assim a não sentir que falhei; a não experimentar baixa autoestima. Um exemplo disso seria dizer: “deixe eu falar do meu jeito!”.


Com isso quero dizer que para lidar com a fala gaguejante o terapeuta precisa conhecer em profundidade os efeitos subjetivos ligados à ideologia do bem falar1,2,3,  e estar sensível ao fato de que as pessoas que gaguejam, estão vivendo relações de comunicação que rejeitavam a forma de sua fala, o que  tem potencial para gerar uma imagem estigmatizada de falante. O terapeuta precisa compreender em profundidade, também, que a típica reação de tentar controlar a fala é problemática, por ser um caminho que gera tensões ao falar, dado que a produção de fala se dá de modo automático e espontâneo. Pode-se dizer que o controle da fala está na raiz do funcionamento de uma fala com gagueira.


Diante dessas colocações, me parece interessante pensarmos sobre o encadeamento das condições descritas, desde o seu ponto mais precoce: o modo como, no senso comum, se costuma olhar para a disfluência infantil e reagir a ela.


Disfluir é aquilo que qualquer falante pode fazer durante o tempo em que estiver evocando palavras ou sons que completem seu discurso. Sugere que o falante demorou para evocar uma palavra ou para decidir se ela seria a melhor palavra naquele momento. Isso se difere de gaguejar, que é aquilo que o falante faz quando sabe quais palavras irá usar e prevê que irá gaguejar em algumas delas.


A disfluência infantil, no senso comum, porém, é, muito frequentemente, interpretada como sendo gagueira. Junto com a interpretação, está a valorização negativa desse modo de falar, considerado indesejado; inadequado. Quantificar as disfluências e definir que acima de três ou quatro repetições silábicas, por exemplo, se trata de gagueira, é parte da ideologia do bem falar, é uma forma de patologizar a fala de uma criança. Tenho um amigo que quando criança era bastante disfluente. Sua mãe, certo dia, estava se preparando para viajar. Ele, na época com 4 anos de idade, vendo aquela movimentação, percebeu que ela se ausentaria mais uma vez, e perguntou: “- mãe, quan, quan, quan, quan, quan, quan, quan, quan, quan, quan quando você vai voltar?” A mãe, fonoaudióloga experiente no assunto, só por curiosidade contou nos dedos as vezes que ele disfluiu e contou 10 repetições, mas sua reação foi somente a de dar os devidos esclarecimentos ao filho, garantindo que em breve voltaria, sem qualquer referência que rejeitasse o seu modo de falar. Só para registrar: ele hoje não é gago.


Relacionando isso com minha história de fala, lembro quantas e quantas vezes pediram para eu me acalmar, respirar e falar devagar. Quantas vezes fui imitado e debochado. Lembro que sentia tais reações como rejeições à minha fala. E isso era tanto pior à medida que não sabia como falar de outro modo que não fosse  o meu. O que eu dizia parecia não ter valor e a consequência era o diálogo não ter continuidade, porque a forma de minha fala era negada. Entendia que deveria falar de um outro modo; que deveria fazer alguma coisa para conseguir falar do modo idealizado pelo outro; que deveria fazer alguma coisa para não ser ridicularizado. Nesse contexto, perdi a minha espontaneidade de fala; minha fala deixou de ser livre, tornou-se tensa e com sofrimento. Diante de tudo isso, como poderia não se formar uma imagem de falante estigmatizado em minha subjetividade?

As reações sociais eram meu maior tormento. Não sabia me relacionar com aquilo. Passei também a não me aceitar, a não aceitar minha fala e continuei a procurar ajuda.


Aos 15 anos fui a um psicólogo. Resta-me um vazio a respeito dessa terapia. Considero que não melhorei em qualquer aspecto da minha vida. Aos 17 anos passei pela segunda fonoaudióloga. Com essa idade lembro de algumas crenças que eu tinha em relação à minha fala. A mais marcante era que eu não conseguia falar palavras começadas com vogais. Tinha certeza da gagueira diante de palavras com vogais e disse isso para a fonoaudióloga. O tratamento foi à base de exercícios com língua de sogra, exercícios articulatórios com rolha de vinho, exercícios de respiração e de leitura, principalmente de palavras com vogais. Lembro-me de ler algumas vezes colunas da revista Caras e de escrever diversas palavras com vogais em um caderno. A leitura deveria ser ritmada e suave. Havia aumentos tímidos na minha fluência. Aproveitei as férias da fonoaudióloga e abandonei o tratamento porque ele não ressoava dentro de mim. Sentia que não me traria o resultado esperado.


Com 18 anos novamente procurei uma fonoaudióloga. A base do tratamento anterior se repetiu: técnicas de respiração, relaxamento, leitura, com um acréscimo: usei cravo-da-índia debaixo da língua, com a intenção de mudar o foco da minha atenção da gagueira para o cravo. Resultado: fiquei com um hálito muito bom.


Com essa fonoaudióloga sentia melhoras momentâneas, principalmente dentro do consultório. Ela era atenciosa e carinhosa. Eu falava bem com ela, mas quando saía dali aquilo não fazia a menor diferença. Certo dia, na escola técnica que estava cursando, o professor pediu que a turma lesse um texto. Lembro-me muito bem desse dia: a sala em U, cada parágrafo era lido por um aluno. Eu era um dos últimos e a minha vez se aproximava. Eu tinha a certeza de que gaguejaria. Estava em dúvida se corria do bicho ou se ficava para que ele me comesse. Decidi ficar e enfrentar. A certeza da gagueira materializou-se. Travei e, mais uma vez, chorei. Os colegas e o professor riram e saí da sala envergonhado e decepcionado comigo mesmo. Pensava: “Como posso não conseguir fazer algo que as pessoas fazem tão facilmente?”. Lembro também que um dos primeiros pensamentos que tinha quando acordava era planejar o que iria falar durante o dia. Se tinha alguma situação definida de fala, planejava o diálogo mentalmente. Ao prever o lugar da gagueira, pensava em outra palavra em que tivesse a certeza da fluência. Outra situação que lembro é que ao falar ao telefone deitado na rede, sentia-me totalmente tenso da cabeça aos pés. Além dos vexames ao falar, em outras situações vivia o silêncio, me calava e nada falava. A confiança, sentimento-chave no processo terapêutico, gerada dentro do consultório não era sentida nas ruas. E assim desisti de mais um tratamento fonoaudiológico e tive a clara impressão de que a fonoaudiologia poderia ser competente para tratar qualquer coisa, menos de gagueira.


A partir dessas vivências, gostaria, mais uma vez, de pensar com vocês o que hoje acredito teria sido um bom caminho terapêutico para o trabalho fonoaudiológico com minha gagueira já na adolescência.  Os treinos poderiam sim ter ocorrido, mas com outro objetivo. Não deveriam ter sido direcionados a falar bem, porque isso só incrementava o desejo de controlar a gagueira, que favorecia a antecipação de sua ocorrência e, consequentemente, o surgimento de travas para impedir o seu aparecimento. Os treinos teriam sido úteis se me ajudassem a gaguejar sem medo. Isso reverteria o processo de antecipar a gagueira e, portanto, suprimiria as travas. Nesse sentido: 1- gaguejar de propósito e brincar com a gagueira (intensificando-a, por exemplo) em diferentes situações sociais; 2- sentir os gestos articulatórios que compõe as travas para poder entender o que acontece com o corpo nesses momentos que parecem tão obscuros; seriam treinos que hoje considero bastante interessantes. Acredito, portanto, que os treinos devem ser para criar condições subjetivas que permitam ao falante gaguejar e para que a gagueira possa ser sentida e compreendida em sua materialidade articulatória em momentos em que o falante não está emocionalmente exacerbado. É importante ajudar o falante a viver a gagueira sem a carga emocional que está  presente nas situações sociais de seu cotidiano, a fim de que possa perceber que gaguejar não é desesperador como lhe parece, é sim um aumento da força que emprega ao falar. Esse aumento de força é algo concreto, algo com que o falante pode aprender a lidar.


Voltando novamente à minha historia de fala, diante dos sucessivos profissionais despreparados com quem me relacionei e dos resultados ruins a que cheguei, decidi procurar um profissional em um campo de saber diferente dos anteriores. Procurei então um otorrinolaringologista, porque fazia, na laringe, muita força para falar. Fui ver se havia algum defeito que pudesse ser corrigido com cirurgia. Para minha frustração, não havia. Outra tentativa que fiz para parar de gaguejar foi comprar CDs de um fonoaudiólogo que apareceu no programa do Jô Soares divulgando seu tratamento.


O fonoaudiólogo vendia a cura da gagueira por meio de CDs com técnicas de oratória e impostação de voz. Meu pai comprou os CDs e eu comecei a treinar, a imitar o modo como o fonoaudiólogo falava nas gravações. Será que preciso falar qual foi o resultado? Sentia-me um idiota repetindo aquilo, mas me esforcei até onde achei que poderia ir, afinal meu pai, que investira no material, queria algum resultado positivo também.


Isso tudo só reforçava um entendimento sobre mim: sou mau falante e preciso treinar mais e mais para melhorar. Porém, aquilo não parecia fazer sentindo. As terapias não faziam sentido, apesar de serem realizadas por profissionais graduados. Eu acreditava que as fonoaudiólogas sabiam o que estavam fazendo, porém eu seguia gaguejando e com medo de falar. Sentia como se estivesse me esforçando pouco, porém, ao começar qualquer dos exercícios que eu havia aprendido, logo desistia.

Decidi então procurar ajuda na internet. Conheci um grupo de pessoas que gaguejavam e soube, somente então, que havia fonoaudiólogos especializados no assunto, bem como da existência da ABRAGAGUEIRA. Diante disso, solicitei, à fonoaudióloga presidenta da instituição, indicação de um profissional especializado em minha cidade. Fui atendido e entrei em contato com a fonoaudióloga Priscilla Silveira, com quem comecei meu último processo terapêutico. Nessa terapia tudo foi diferente. Nada de língua de sogra, exercícios respiratórios e de leitura, nem cravo-da-índia. A terapia me levou a compreender como eu me relacionava com a minha fala; quais as crenças e sentimentos envolvidos; o que eu pensava sobre determinados ouvintes; sobre mim enquanto falante e me fez aceitar os momentos de gagueira.

Descobri que eu tinha muitos momentos de fala fluente, mas não os valorizava. A fluência era algo que, muitas vezes, me assustava. Eu achava que ela não fazia parte de mim e ao me ver fluindo, isso era entendido como uma ameaça, um anúncio de gagueira iminente. Esse comportamento foi diminuindo quando passei a observar o quanto eu também era fluente. Eu era fluente com minha namorada, com os pais dela, com pessoas desconhecidas, com crianças, sozinho... Ao me acostumar a me ver mais fluente, fui ficando mais confiante em minha capacidade de falar.


Por ter passado a perceber minha fluência e o estado subjetivo que a acompanha, comecei a notar diferenças subjetivo-discursivas entre os momentos de fluência e de gagueira. Ao ser fluente não duvidava da minha capacidade articulatória, não me preocupava com o julgamento do outro, não antecipava a gagueira, não tinha medo de falar, me sentia em situação de igualdade ou de superioridade em relação ao interlocutor. Ao gaguejar, acontecia o contrário: acreditava na minha incompetência, pensava no que o outro pudesse pensar sobre mim, antecipava a gagueira, tinha medo de falar e me sentia em posição de inferioridade em relação ao outro.


Nas terapias anteriores, os exercícios de leitura e de articulação se pautavam na negação da fluência que já existia, justamente porque eram propostos e realizados visando a fluência, como se ela não existisse desde sempre em minha fala. Consequentemente sustentavam a gagueira, pois confirmavam as impressões que eu havia construído sobre minha fala, de que a fluência não existia e precisava ser conquistada. Talvez por sustentar a gagueira é que eu perceba que os pacientes que passaram por muitos fonoaudiólogos da linha tradicional estão mais afetados pela gagueira do que aqueles que não passaram.


Todos esses pontos foram iluminados e pude promover mudanças significativas em meu modo de me ver e de falar. Lembro que um dia perguntei a minha esposa sobre o modo como ela falava, para saber se ela tinha preocupações semelhantes às minhas e descobri que não. Também percebi que aquilo que eu pensava que o outro pensava sobre mim, e me fazia sofrer, era na verdade o que eu mesmo pensava sobre mim e inadvertidamente projetava sobre o outro. Percebi ainda que, geralmente, o que eu pensava sobre o que o outro pensava sobre mim estava equivocado. Então comecei a ter um olhar mais claro sobre como eu de fato me comportava e o verdadeiro sentido daquilo que pensava ao falar.


O efeito de todas essas mudanças que experimentei sobre minha imagem de falante e minha forma de falar, me levou a tomar a decisão de cursar Fonoaudiologia, na intenção de poder ajudar outras pessoas que sofrem com a fala. Logo que terminei o curso na UnP -Universidade Potiguar do Rio Grande do Norte, fui fazer Mestrado na PUC-SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com o objetivo de aprofundar os estudos sobre os problemas de fluência de fala e seu tratamento, com a fonoaudióloga Silvia Friedman, referência na visão de gagueira que me levou às mudanças referidas.


Isso se refletiu no tema de minha dissertação, que teve como objetivo descrever o funcionamento subjetivo e discursivo na produção de fala com gagueira4,5. Essa descrição visou a ampliar o conhecimento sobre as singularidades do funcionamento linguístico do sujeito que gagueja, a fim de oferecer elementos para construir e apoiar uma abordagem terapêutica pautada no objeto da Fonoaudiologia: a linguagem em sofrimento. Nessa dissertação mostro que na fala gaguejante há um desequilíbrio entre fala (sentido do que dito) e língua (forma do que é dito: semântica, sintaxe, fonética, etc).


Para que possam entender isso explico que a fala se move sempre em dois eixos: o do sentido e o da forma. O eixo do sentido corresponde a que o falante precisa saber o que pretende dizer. O eixo da forma corresponde a que o falante precisa dominar um idioma, ou seja, suas regras de uso para poder de fato dizer o que pretende. No ato de fala propriamente dito, entretanto, o falante está completamente esquecido da forma, a forma funciona num nível inconsciente e automático. O que permite que siga com seu discurso é o sentido do que diz. Se em um dado momento não souber que palavra usar para continuar dando sentido ao seu discurso, (um problema com a forma da fala) seu discurso para e a fluência, portanto, se interrompe, até que encontre uma palavra adequada para poder seguir em frente. O mesmo se dá quando temos que falar em um idioma que dominamos mal, as palavras nos faltam com frequência e a fluência fica prejudicada. Isso mostra que a posição de equilíbrio, a posição que gera fluência, é a aquela em que o falante, por dominar o idioma, está esquecido da forma.


Na fala com gagueira a pessoa presta total atenção à forma de sua fala, porque deseja evitar o surgimento da forma gaguejada por meio da antecipação do lugar em que ela vai aparecer. Quando faz isso, entretanto, ela invade um funcionamento que, como vimos, é automático. E ao fazer isso, ela se desliga do sentido do seu discurso, onde deveria permanecer para, de fato, poder continuar fluindo. Isso quer dizer que a posição de desequilíbrio, aquela que leva à perda da fluência, se cria porque a atenção sai do sentido e vai para a forma. E o falante age desse modo porque se sente estigmatizado em seu modo de falar.


Uma condição de fala que prontamente suscita esse desequilibro é aquela em que a liberdade discursiva é pequena, como por exemplo ao ser solicitado a dizer o próprio nome, a profissão, o endereço, as horas, etc. Nessa condição a certeza de gaguejar nas palavras se torna grande por não haver a possibilidade de modificá-las. Na desarmonia, portanto, que é essa certeza de não conseguir falar certos fonemas e palavras (aspecto formal da fala), “o que se diz” se perde e o “como se diz” fica em evidência e sob dúvida.


As pessoas que entrevistei a fim de gerar dados para a minha pesquisa de Mestrado4, revelaram os modos como a gagueira é antecipada subjetivamente, milissegundos antes de se materializar na fala.

O Entrevistado 1 disse: É um ciclo vicioso, porque quando você antecipa, pensa que vai gaguejar, então você considera como se fosse gaguejar mesmo. O Entrevistado 2 afirmou: Quando vai falar, já vem aquela palavra que não vou conseguir... E não consegue mesmo (...). Não compreendo bem a causa disso.  Ao afirmar isso este entrevistado revela tanto o poder da antecipação da gagueira para que ela de fato ocorra, como sua dificuldade para compreender que gagueja, justamente porque prevê. O Entrevistado 3 disse: ele vai antecipar, ele sabe que naquela palavra ele vai gaguejar. O Entrevistado 4 disse: é botar na cabeça: eu não vou gaguejar. Mas você gagueja. O Entrevistado 6 contou: sempre penso que antes de falar eu posso vir a gaguejar4.


Também mostraram que a antecipação se manifesta por meio de emoções e sentimentos como medo, ansiedade, preocupação, abalo. O Entrevistado 1 disse: se você pensa que pode gaguejar, você já fica se antecipando, aí gera uma ansiedade; talvez seja o medo de eu não conseguir falar tudo o que eu pretendia. O Entrevistado 2 referiu-se a um abalo que é materializado (...) na fala. O Entrevistado 3 disse: você vai falar e sabe que vai gaguejar, você já fica um pouco tenso. A Entrevistada 6 disse: quando (...) eu me preocupo em falar, aí eu não consigo falar bem4.


A antecipação se mostra ainda por meio do uso de estratégias para falar sem gaguejar: O Entrevistado 2 referiu que no posto de gasolina prefere sair do carro para fazer o pedido ao frentista. Também referiu que substitui palavras; prolonga sons; é capaz de transferir a gagueira para outra [palavra] anterior [à prevista] e, na padaria, prefere pedir os pãezinhos pelo seu valor em dinheiro, em vez de dizer o número de pãezinhos que deseja. O Entrevistado 5 disse que usa uma entonação ou alguma muleta para conseguir continuar falando. A Entrevistada 6 também disse que troca palavras ou então se cala e diz: ai, esqueci. Também tenta ficar calma ou fala muito depressa4.


Como vimos, em certas situações comunicativas os entrevistados têm certeza de que não conseguirão falar sem gaguejar e de que seu ouvinte interpretará seu modo de falar como gagueira. Na intenção de evitar a concretização das suas previsões, substituem palavras; ficam em pé para ajudar-se a falar ou pronunciar a palavra temida; usam determinada entonação e velocidade de fala considerada facilitadora, entre outras estratégias possíveis de serem criadas. O curioso é que, sem se dar conta, essas pessoas resolveram um problema de fala falando. Isso será incompetência ou competência articulatória? Se falar fosse realmente alguma impossibilidade, não haveriam estratégias, truques para falar que dessem resultado positivo4,5.


As estratégias são incorporadas e mantidas, pois cumprem o papel de gerar fluência, sem que o falante perceba a incoerência que isso encerra. No funcionamento discursivo gaguejante, o falante age como se soubesse aquilo que, de fato, não é sabido, isto é: o lugar em que algum lapso, hesitação ou tropeço ocorrerá. Não é sabido porque, embora os falantes saibam falar, não sabem como o fazem, de modo que é impossível prever equívocos, quebras, lapsos, hesitações. Nessa condição, a produção da gagueira pode ser entendida como produto de uma interferência na espontaneidade da fala, ou seja, produto de um tipo de funcionamento discursivo, que, como mostraram os entrevistados, persegue a ilusão de poder controlar e corrigir a forma gaguejada de falar prevendo-a, e desse modo, prioriza a forma da fala em lugar de priorizar o sentido, com o que, como era intenção demonstrar na dissertação, a posição fluente se perde4,5.


Antes de terminar o meu relato, gostaria de deixar meu comentário sobre uma frase que tem sido bastante repetida na mídia e nos eventos sobre gagueira: “Gagueira não tem graça. Tem tratamento”. Que tem tratamento eu concordo, mas que não tem graça, eu discordo, já que, efetivamente, ela faz rir e acredito firmemente que saber acolher essa graça é fundamental para sua superação. Demorei muitos anos para ter esse pensamento, mas durante o mestrado, em busca de entender o que torna a gagueira risível, comprei o livro “Riso – ensaio sobre a significação da comicidade”, de Henri Bergson. O autor explica o que nos faz rir em algumas situações do cotidiano e dá vários exemplos. Vou relatar apenas um que tem relação com o gaguejar. Bergson conta sobre um certo orador que faz vários gestos ao falar, acompanhando com eles suas palavras. Parece que o gesto corre atrás do pensamento e eis que certo movimento do braço ou da cabeça, sempre o mesmo, parece-lhe voltar periodicamente. Passa então a observar mais atentamente um desses gestos, distraindo-se do discurso em si, e o espera. Quando ele aparece, involuntariamente ri. Por quê? Porque tem agora diante de si um mecanismo esperado que funciona automaticamente. De maneira semelhante, as pessoas riem da gagueira porque é algo periódico, que distrai, que se espera que aconteça e acontece. Gagueira tem graça sim e isso não é ruim! O riso não tem maior inimigo que a interpretação, especialmente se esta vem lotada de emoções negativas, com sentido estigmatizante. Quando estamos negativamente sensibilizados com algo, perdemos a leveza necessária para rir junto porque não vemos a graça e nos ofendemos com isso.


Meus amigos, agradeço cada segundo da atenção de vocês.

Referências
1- Friedman, S. Gagueira: Origem e Tratamento. São Paulo: Plexus Editora,  2004, v.1, 146 pp.
2- _________ Gagueira- Uma Visão Dialético Histórica In: Gagueira: Um distúrbio de fluência.1 ed. São Paulo  Santos, 2007, v.1, p. 189-201.
3-_________  Fluência de Fala: Um Acontecimento Complexo In: Tratado de Fonoaudiologia. 2 ed. São Paulo: Editora Roca LTDA, 2010, v.1, p. 443-448.
4- Wladimir A. P. de L. Damasceno – Quando a Posição Fluente se Perde: Desarmonia entre Fala e Língua, Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2012.
5- Wladimir A. P. de L. Damasceno & Friedman, S. – Quando a Posição Fluente se Perde: Desarmonia entre Fala e Língua, Revista de Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 24(3): 309-321, dezembro, 2012.