Vários anos de dedicação ao estudo e ao tratamento da gagueira levaram-nos a perceber a necessidade e a importância de ocupar-nos de uma questão mais ampla: a produção da fala, espaço em que está compreendida a polaridade (se é que podemos nos expressar assim) entre fluir e gaguejar, para evoluir nas possibilidades de compreensão e tratamento dos problemas relativos ao falar.
O fato de a preocupação com a produção da gagueira ter-nos levado à preocupação com a produção da fala deve-se, por sua vez, a uma outra preocupação, que alarga ainda mais os horizontes em que necessariamente devem inscrever-se a prática clínico-terapêutica e a teorização em uma área de saber que se pretende científica como a Fonoaudiologia. Trata-se da busca de coerência entre as concepções científicas que norteiam o pensar e o fazer terapêutico. É fato que campo científico abrange, hoje, diferentes concepções teórico-metodológicas para estudar os objetos de seu interesse. Não é raro que um mesmo objeto seja estudado sob diferentes concepções, que não necessariamente excluem umas às outras. Assim, sem pretender aprofundar aqui as características dos modelos de racional idade que dão suporte ao fazer científico, pode-se dizer que temos atualmente delineados ao menos dois desses modelos. Um estuda os objetos em si, por si, recortando-os do contexto, e o outro estuda os objetos a partir de seu contexto.
A linguagem e seus problemas, objeto da Fonoaudiologia, têm sido estudados por ambos os modelos, e, nela, o tema gagueira não fugiu à regra. Resta saber onde se tem chegado com esses estudos, e se os resultados não teriam algo a nos ensinar sobre a importante questão da ética na ciência.
Estudando a gagueira a partir do modelo que vê os objetos em função de seu contexto, chegamos a uma explicação que a vê como uma forma de sofrimento. Em pesquisas realizadas com pessoas que se consideravam gagas, captamos uma subjetividade marcada pela visão negativa, estigmatizada de si como falante, que veio a se constituir por meio de relações de comunicação em que a repetição e a hesitação na fala são vistas com receio, negativismo, com não aceitação. Captamos também uma subjetividade em que a pessoa, para não gaguejar, antevê os momentos de gagueira, tentando, por esse método, eliminá-los, e obtendo em vez disso uma fala significativamente tensa. Pudemos compreender, assim, uma importante relação entre a subjetividade e a objetividade na produção de fala com gagueira, compreensão - diga-se de passagem - suficientemente ampla para explicar a sua intermitência.
E foi exatamente essa visão contextualizada de produção de "gagueira sofrimento" que nos levou a entender a importância que as crenças e os valores sociais, que a interpretação dos outros, têm para a capacidade individual de produção da fala. Nossas pesquisas sobre gagueira evidenciaram uma estreita ligação entre interpretação do outro, auto-interpretação e capacidade de produzir fala de modo geral, em diferentes contextos.
Seguindo essa linha de raciocínio sobre a produção da fala, temos que, para compreendê-la de forma concreta, importa sempre a dialética entre o estado emocional (sentir), o raciocínio (pensar) e a atividade de falar (agir) da pessoa em um determinado momento, considerando ainda a relação de tudo isso com o contexto social que a cerca e necessariamente influencia. Dito de outro modo, isso significa, ainda, que importam tanto o biológico como o simbólico, este na dimensão pessoal e na socialmente compartilhada. O que se pretende destacar com isso é que a noção do que seja fluência não é simples. Ela não se descola de forma auto-evidente da atividade motora do falar em si. Vários determinantes podem entrar em pauta para compor subjetivamente essa noção, tanto para quem fala como para quem ouve, tais como status social dos interlocutores, idade dos interlocutores, estado emocional dos interlocutores, importância da mensagem, entre outros. Estudos recentes, que enfocaram o julgamento de vários tipos de pessoas sobre se certos segmentos de fala eram fluentes ou gaguejados, comprovam a subjetividade envolvida nessa noção, na medida em que foi observado que julgamentos sobre os mesmos segmentos variavam entre as pessoas e, ainda, que a mesma pessoa pudesse modificar seu julgamento diante da reapresentação do mesmo segmento (Zebrowski e Conture, 1989; Onslow, Gardner, Bryant, Stuckngs e col., 1992; lngham, R. J., Ingham, J. C, Cordes, Gow, 1995, apud Friedman, 1997). O que vemos a partir disso é que a questão do que é fluência em suas múltiplas determinações precisa ser mais estudada.
Tudo isso nos levou a pensar na necessidade, como fonoaudiólogos e pesquisadores, de explorar as características cotidianas de produção da fala, tema sobre o qual não encontramos nenhuma pesquisa sistemática, nenhum investimento. O que encontramos como interessante disparador para a reflexão é que a descrição de fala com disfluências, como hesitações, repetições, prolongamentos e bloqueios, pode tanto se referir à gagueira, como mostra a literatura especializada, quanto à fluência, como bem nos mostram os lingüistas, explicando que ela não é absoluta em ninguém e pode apresentar comportamentos como os indicados, de acordo com a situação em que o falante se encontra (Marcuschi, 1995). Um outro aspecto que decorre dessas considerações, e que aponta para a necessidade de pesquisar as características cotidianas de produção da fala, é que, sem uma compreensão científica sobre o que seja a fluência, como se pode pensar o que seja normal ou patológico a respeito da produção de fala, sem que se estabeleçam, na verdade, juízos de valor que acabam por se revestir de cientificidade. E quais as conseqüências disso para os falantes ante as triagens, avaliações e tratamentos de fala?
Nessa medida, torna-se especialmente significativo, com relação à produção da fala, perguntar-se onde começa a normalidade e onde começa a patologia em matéria dessas disfluências, e em que condições se pode ou deve falar em patologia.
A esse respeito, lembramos Canguilhem (1995), que em sua obra "O normal e o patológico" faz ver, com clareza, a relação entre normalidade e normatividade de vida. O termo "normal", explica ele, tanto significa regularidade de aparecimento de algo quanto é um juízo de valor. Entretanto, é preciso tomar cuidado, estar alerta para não tomar regularidade como sinônimo de normalidade como valor. Aquilo que se constitui em regularidade com relação à vida, aquilo que pode ser expresso como média por sua freqüência de aparecimento, não se constitui por isso em normalidade como valor. Não é a média que expressa o normal, são antes as normas mais freqüentes da vida que são captadas como médias. Porém, aquilo que foge às médias nem por isso deixa de ser também normal, visto que na vida a normalidade engloba tanto a regularidade como a irregularidade. Com efeito, do ponto de vista biológico, anormal seria algo que jamais apresentasse irregularidades. Assim, explica ele, a vida tem sua própria normatividade e esta tem relações com as condições do meio em que vive o homem, o qual não se mantém idêntico e imutável e tem relações com o contexto sociocultural de cada época e seus diferentes valores e crenças. O normal não deve ser confundido com as médias de comportamento, nem visto como um valor absoluto sempre idêntico a si mesmo. O normal é, antes, um valor que depende da capacidade de adaptação do homem ao seu meio físico e social e da aceitação do homem pelo meio social. O normal é, em suma, um valor relativo, mutável e socialmente construído. O levantamento de freqüências de comportamentos só revela as possibilidades do humano, desde as mais usuais até as mais raras. Tais possibilidades, além do mais, poderão ser válidas somente em determinado contexto; mudado o contexto, também podem mudar as freqüências de comportamento. Por isso mesmo, como explica Canguilhem (1995), nenhum valor deve derivar de freqüências de comportamentos, como no caso da produção da fala, acrescentamos nós, em que não raro se vê fixada a idade até a qual seria normal haver disfluências e as freqüências de disfluências que seriam normais para!' a idade. Afinal, qual seria a base científica para essas normas?
A partir dessa reflexão, consideramos a importância e a necessidade de conhecer a normatividade da vida em relação à produção da fala e por ela nortear nossas avaliações clínicas e nossa abordagem terapêutica, evitando assumir juízos de valor ditados pelo senso comum, pelos gostos, pelas modas, e, em fim, por valores estereotipados de Homem e de produção de fala. E é nessa reflexão também que norteamos o projeto de pesquisa que, no Núcleo de Produção da Fala, desenvolvemos com os estudantes, no programa de pós-graduação da PUC-SP. As pesquisas que até o momento foram desenvolvidas com adultos, têm reforçado a insustentabilidade das relações entre normalidade e freqüência de disfluências por idade. Uma pesquisadora está trabalhando num levantamento das disfluências ou gagueiras da fala de locutores e professores e outra, num levantamento da fala de estudantes universitários em situação de exame oral. Nesses levantamentos vê-se o falante adulto apresentando uma riqueza de disfluências, que em função da situação e da posição social dos interlocutores não são levadas em conta, não são alvo de qualquer patogenicidade, muito embora sejam do mesmo tipo das que motivam algumas mães a fazerem queixa da fala de seus filhos a um fonoaudiólogo, conforme tivemos oportunidade de comparar e apresentar no lII Congresso Internacional de Fonoaudiologia;
Assim, as pesquisas sobre o cotidiano da produção da fala nos fazem entender que não há como, de forma científica, fixar previamente padrões virtuais de fluência e disfluência como normais e patológicos, para nortear os processos de avaliação, orientação e tratamento da fala. Fazem-nos entender que esses processos devem pautar-se não em parâmetros virtuais de fala, mas na compreensão contextualizada da sua produção. Esta, como dissemos, implica a abertura do terapeuta para captar a dialética entre a subjetividade (sentir, pensar e agir) e a objetividade (meio social) do falante, que se constitui num momento único, sempre renovável, só passível de ser cientificamente compreendido por meio da percepção da singularidade de cada instante de fala. Fazem-nos entender que as freqüências e os tipos de disfluências/gagueiras não mostram a patogenicidade da produção de fala, mas a normatividade da vida em relação a ela. A esse respeito, vale dizer, nossa tese é de que não há patogenicidade na gagueira e sim conseqüências de um sofrimento para falar, socialmente adquirido. Mas esta é uma outra reflexão, que envolve, provavelmente, uma discussão sobre a relação entre patogenicidade e sofrimento, que escapa às possibilidades deste momento.
Terminamos assumindo que, em tudo quanto dissemos, esboça-se uma ética que inspira o pensar (teoria) e o fazer (prática) no lidar com os problemas da produção da fala, na dimensão da polaridade fluência/gagueira. A vertente da descontextualização, se transformar seus achados em normas, será passível de gerar valores desumanizadores para o homem, porque se referirá não ao homem real, mas a um homem idealizado. Desumanizadores, também, porque pautada num homem ideal estará criando mecanismos de diferenciação, discriminação e portanto exclusão dos indivíduos, propiciando com isso, no mínimo, o aumento de seu sofrimento. É na perspectiva da contextualização, respeitando a normatividade da própria vida que podemos encontrar parâmetros éticos de avaliação e tratamento dos problemas de produção da fala.