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O que é gagueira?


Silvia Friedman

É o efeito de uma forma de funcionamento subjetivo singular sobre a produção da fala.

De modo geral as respostas a essa questão são dadas a partir de um raciocínio inspirado na área médica. Essa área, que tem como objetivo cuidar das doenças do corpo humano, busca sempre descobrir qual agente dentro do corpo causa esta ou aquela doença para assim poder controlá-la. Esse raciocínio aplicado à manifestação da fala com gagueira sustenta as hipóteses que ela se deve a algum problema no funcionamento neurológico ou decorre de alguma característica genética peculiar.

O fato é que nem uma nem outra hipótese foram satisfatoriamente confirmadas até o momento. A isso soma-se o fato de que toda pessoa que gagueja também não gagueja conforme as condições de fala que enfrenta, como, por exemplo, quando fala sozinha, fala com animais, canta.

Esse fato levou-nos a deixar de lado o raciocínio do tipo causa efeito e a deixar de procurar no corpo a falha que explique a fala produzida com gagueira. Em vez disso, passamos a pesquisar o funcionamento subjetivo e dentro dele o funcionamento da fala para entender sua possível relação com a produção de fala com gagueira.

O funcionamento subjetivo não nasce pronto com a pessoa. Ele se constrói ao longo da vida, a partir das relações interpessoais que se estabelecem na família, na escola e na sociedade em geral, dentro de uma dada cultura.

Desse modo da cultura cria marcas no funcionamento subjetivo dos seus membros, de tal modo que todos as pessoas têm elementos semelhantes na sua subjetividade, tal como o reconhecimento das autoridades, o conhecimento das regras comuns ao grupo e assim por diante. Esses aspectos comuns viabilizam a vida em sociedade. Ao mesmo tempo, cada pessoa constrói sua subjetividade de um modo singular e único, de acordo com as experiências pessoais que vivencia e seu modo de sentir as coisas. Os dois aspectos entram em jogo no funcionamento subjetivo singular de cada pessoa.

Dentro dos aspectos comuns a todos os membros de uma sociedade podemos localizar na cultura ocidental uma ideologia do bem falar que perpassa a mentalidade das pessoas em geral. Essa ideologia leva as pessoas a acreditarem que a fluência de fala é absoluta, ou seja, não contém disfluências. Na realidade, entretanto, a fala normal contém fluências e disfluências. A disfluência aparece em momentos em que a pessoa não encontra uma palavra para expressar o que deseja, ou, ao contrário quando duas palavras concorrem entre si num mesmo momento de emissão; quando o falante não domina bem o assunto sobre o qual fala; quando o falante está ansioso; quando está com medo. Estas são algumas das condições associadas ao aparecimento a disfluência e o que elas mostram é que a disfluência está relacionada ao que se passa na subjetividade do falante.

A ideologia do bem falar afeta especialmente as crianças que apresentam muitas disfluências como condição natural ao seu funcionamento de fala. Como o discurso da criança pequena é bastante simples e o adulto pode prevê-lo com facilidade é comum que se focalize nas disfluências e as valorize excessivamente. Inspirado pela ideologia do bem falar, vê as disfluências como erradas, inadequadas, indesejáveis, perigosas. Muitos adultos crêem que as disfluências são o início de uma gagueira e entendem que a gagueira é um mal.

Quando uma criança fica submetida a uma situação em que sua fala é considerada má, inadequada; quando percebe que as disfluências são a parte má, surge em sua subjetividade uma motivação para ficar tensa ao falar, no mínimo, com as pessoas que reagem negativamente à sua fala. Com isso suas disfluências tendem a aumentar e pode surgir esforço muscular para falar. Isso, evidentemente, faz os adultos entenderem que a gagueira está piorando e consequentemente eles mantêm ou aumentam seu modo negativo de reagir às disfluências.

Esse modo de compartilhar a comunicação entre criança e adulto, leva a criança ao desejo de controlar sua fala de modo a evitar o aparecimento dos trechos gaguejados e tornar sua fala aceitável. Além disso, outras crianças também costumam rir ou imitar as disfluências de seus coetâneos e isso coopera com o desejo de controlar a fala pela criança que disflui.

O desejo de controlar o fluir da fala é problemático porque sabemos falar, porém não sabemos como falamos. O fluir da fala se processa de modo espontâneo e automático. O falante não sabe como faz para falar e fluir. Quando fala fica no sentido do seu discurso, no conteúdo do discurso e não na forma. Mas o desejo de controlar a fala leva-o necessariamente para a forma, porque somente nela a fala parece oferecer algo para ser controlado, isto é: a palavra, o som, a letra. Assim, para atender ao desejo de controlar a fala, o falante se desvia do seu funcionamento natural de fala e gera um novo modo de funcionamento.

Esse novo funcionamento é problemático porque se processa a partir da antecipação de gagueira na fala que ainda não foi falada. A antecipação significa que o falante localiza um suposto lugar para a gagueira. Essa localização por um lado é necessária, porque permite ao falante saber para onde dirigir seu esforço e desse modo ele pode continuar falando Por outro é problemática porque ao antecipar a gagueira está antecipando aquilo que entendeu com um mal e isso representa uma ameaça. Diante da ameaça da gagueira antecipada os músculos da fala se tensionam. Isso produz uma quebra no fluir da fala, ou seja, uma gagueira. Então parece ao falante que sua previsão estava certa. Diante dessa situação o falante pode passar a trocar as palavras temidas por outras que ele acredita que poderá pronunciar, a fazer movimentos com o corpo para fazer a fala sair, a dar uma breve inspiração antes de dizer a palavra temida e muitas outras estratégias sempre com a intenção de soltar, de liberar a fala que antecipou. E esse modo (tenso) de falar vai se transformando no seu novo modo automático de falar.

Esse modo de funcionamento de fala é coerente com a formação de uma imagem estigmatizada de si como falante, já que o falante não sabe que foi vítima de uma ideologia de bem falar a partir da qual passou a querer controlar o seu falar. O falante também não sabe que o fluir é automático e, justamente porque tentar controlá-lo, está gerando tensões excessivas no seu falar. Ele só sabe que quanto mais tenta falar bem, menos consegue seu intento e para sua maior perplexidade, justamente quando não liga para a fala e quando flui mais.

Em síntese, face a ideologia do bem falar presente no meio social, materializado nas relações de comunicação de uma criança, gera-se uma imagem estigmatizada de falante que fica na raiz da tentativa de controlar a fala para falar bem. Se a imagem permanece na subjetividade esse modo de falar se perpetua ao longo da vida do falante. Quando a imagem de si é bem importante para o falante, as tentativas de falar bem aumentam e com isso a gagueira aumenta. Quando a imagem não é importante para o mesmo falante ele flui.

Entendemos assim que a gagueira é produto de uma forma de sofrimento na fala construído na vida de relação. Esse sofrimento se cria a partir de um funcionamento subjetivo paradoxal, ou seja, o que o falante faz com o objetivo de falar bem, é o que o faz falar com gagueira. É nesse sentido que defendemos que a gagueira é o efeito de uma forma de funcionamento subjetivo singular sobre a produção de fala.

Como vemos, esta explicação da gagueira revela o quanto ela é um problema complexo. É uma explicação que articula: elementos da sociedade (ideologia de bem falar marcando as relações de comunicação), a elementos da subjetividade (no inconsciente a imagem de mau falante e no consciente a certeza de falhas na fala somada à tentativa de falar bem), a elementos no corpo (tensões nos gestos de fala e no corpo).

Resta complementar que com esta explicação não pretendemos abarcar a manifestação da gagueira em toda a sua amplitude. Ela se restringe, especificamente, a todas aquelas pessoas que gaguejam, mas que sob certas condições de fala (falar sozinho por exemplo) são fluentes. Existem também gagueiras que são decorrentes de problemas neurológicos específicos como, por exemplo, a chamada disartria. Nesse caso, sob qualquer condição a pessoa continua tendo dificuldades com a mobilidade dos órgãos articulatórios. Essa condição, entretanto, é favorável à constituição do funcionamento subjetivo aqui descrito, somando-se assim ao problema neurológico a imagem de mau falante e decorrente tentativa de falar bem, o que agrava a condição neurológica.